Mestra Francesinha
“Minha alma é livre, para eu ir aonde eu quiser, buscar a minha ancestralidade onde ela estiver, porque a capoeira me empoderou.“
“Dentre tantas culturas encantadas,
a capoeira é aquela que mais me faz ver o mundo
por perspectivas diversas!
Me faz subverter a ordem!
Axé”
Mestra Francesinha
A Mestra Francesinha, Eliane Glória dos Reis, possui formação na Capoeira e formação nas Ciências Humanas e Sociais.
É Doutora, formada em Educação Física, Advogada, Mestra de Capoeira e atualmente cursa licenciatura em História.
Ingressou na Capoeira no início da década de 1980.
“Depois que eu entrei na capoeira oficialmente, quando eu entendi que a capoeira tinha me chamado para ela, e que esse encantamento está comigo até hoje, mais de 40 anos juntas, eu não consigo pensar sequer em deixar a capoeira algum dia na minha vida.
Comecei uma menina, hoje eu sou uma mulher madura e tudo que eu fiz na minha vida, depois da capoeira, foi por ela, para ela. Por nós. Se hoje eu sou formada em educação física é graças à capoeira, se eu estudo é pela capoeira, se eu viajo, é pela capoeira. Tudo que eu sou, a capoeira me deu. E eu tenho a obrigação de devolver para a comunidade tudo que a capoeira me dá.
Então, a capoeira é a minha vida.
Parece clichê, mas é algo que é lindo, porque o meu corpo físico foi construído pela capoeira, meu corpo mental, foi construído, desconstruído, ressignificado pela capoeira. Minha alma é livre por causa da capoeira. Meu corpo pode até estar aprisionado, no tempo e no espaço, mas minha alma é livre, para eu ir aonde eu quiser, buscar a minha ancestralidade onde ela estiver, porque a capoeira me empoderou. Eu agradeço tudo o que eu tenho na minha vida, aos meus ancestrais, Mestres e Mestras, por me fazerem subverter a ordem. É muito amor que eu tenho pela capoeira.”
O começo
Nascida no município de Niterói em 1967, faz parte do Centro Cultural Rocungo, grupo fundado em 2020, por Mestres e Mestras unidos por um desejo coletivo de autonomia e organização de ideias. É uma das fundadoras. Atualmente o grupo possui doze Mestres Brasil a fora. Quando criança, praticava capoeira na praia com seus irmãos, se divertia com os movimentos, fazia Ballet e Ginástica Aeróbica de competição em uma academia em Niterói. Certo dia, chegou mais cedo na academia, se encantou com o maculelê e com o som do atabaque. Ficou arrepiada e de alma tocada. E foi pelo maculelê que Mestra Francesinha entrou nas aulas de capoeira. Ingressou na adolescência e nunca mais parou.
Seu primeiro mestre de capoeira foi o Mestre Batata (Alexandre Batata), que atualmente, não mora mais no Brasil. Seu nome na capoeira foi dado por Mestre Batata. Surgiu assim que entrou oficialmente para a capoeira, no grupo Raízes d’África. Houve uma festa à fantasia para a arrecadação de recursos para o grupo e, Mestra Francesinha foi vestida de feminista francesa, por isso, ganhou o apelido de Francesinha. Na época não gostou, porém, hoje gosta.
Mestre Batata fundou o grupo Raízes d’África, algum tempo depois incorporado ao grupo Muzenza. Mestra Francesinha foi aluna do Mestre Paulinho Sabiá durante a sua trajetória no grupo Capoeira Brasil, por 32 anos.
Mestra Francesinha
fotos: Maria Buzanovsky
Suas memórias e referências na capoeira são a sua luz.
“Eu acredito que a capoeira se mantém através das pessoas e as pessoas são as memórias. E, essas memórias, elas podem ser oralizadas ou escritas, então, a capoeira traz esse impacto que é transformar a vida das pessoas. Se, quem ministra as aulas de capoeira é uma pessoa com valores, vai impactar positivamente, se não, negativamente. Graças ao universo, ela impactou positivamente na minha vida.
Uma memória que eu tenho é que desde que eu entrei na capoeira pude perceber que a capoeira é um espaço de dominação masculina. Por volta de 1992 e 1993, eu e mais duas amigas decidimos fazer um movimento feminino na capoeira, chamado: ‘Capoeira para homem, menino e mulher, só não aprende quem não quer’. Nos inspiramos na frase do Mestre Pastinha, difundida por vários outros Mestres. Fizemos um evento feminino. Precisávamos mostrar que sabíamos organizar o evento de capoeira, armar nosso berimbau, convidar, etc. E, esse evento foi se repetindo. Até que, vinte um anos depois ele tomou a proporção de agregar outros grupos, outras Mestras, ganhando o seguinte nome: ‘Dandara Viva Capoeira!’. Acho que esse foi o movimento mais bonito que eu já participei, onde mulheres de vários grupos, Mestras de todas as linhagens da capoeira, se unem a cada dois anos. É um movimento ampliado para que os homens compreendam o quão é importante estar nesses espaços, ouvir nossas demandas e pautas.
Outro momento de importante registro de memória, que destaco, foi quando coloquei o meu primeiro uniforme de capoeira. Me senti uma capoeirista. Só porque eu estava usando aquela roupa. E essa memória me traz muitas lembranças gostosas, por falar e pensar como é importante a gente se sentir pertencente a um espaço e incluída. Para que possamos ter identificação e pertencimento à comunidade da capoeira. E, eu me lembro que quando eu consegui comprar o meu primeiro uniforme, com muita dificuldade na época, eu fiquei muito feliz.”
Reconhecimento e educação
Mestra Francesinha tem como referências o Mestre Eziquiel, Mestre Jelon, Mestre Itapuã e algumas Mestras, de sua geração: Mestra Magali, Mestra Sabrina e Mestra Tida. Em 2011 se formou como Mestra, no grupo Capoeira Brasil, sob a supervisão do Mestre Paulinho Sabiá. Obteve reconhecimento pela comunidade da capoeira e nessa nova caminhada de Mestra, buscou permanecer aprendiz, mediando os processos de educação para a capoeira.
Nessa trajetória da Capoeira, atuou no exterior, na Argentina, Colômbia, França, Estados Unidos, Alemanha, Polônia e Hungria. Fala francês, inglês, espanhol e alemão.
Organizou em sua casa um espaço para dar aulas de capoeira. Também ministra aulas na Academia Abebê em Niterói e em Escolas Públicas no Rio de Janeiro e em Niterói. No Espaço em casa, as aulas são às terças, quintas e sábados – adultos, crianças, jovens e idosos. Na escola pública, para crianças da educação infantil e do primeiro segmento do fundamental, atendendo a comunidade escolar. Na Academia Abebê, as aulas são para adolescentes e adultos, às segundas e quartas, no período noturno. Seu projeto sócio educativo, realizado na escola pública e no seu espaço em casa, para crianças que não têm condições de pagar pelas aulas de capoeira, chama-se “Projeto Amazonas: chamou para jogar na escola”.
Na educação trabalha lecionando a disciplina de educação física e atua como professora de capoeira, incluindo a aplicação da Lei n. 10.639/2003, por meio da pedagogia antirracista. Desenvolve também o “Projeto Leitura e Movimento”, contribuindo para o letramento de estudantes que têm defasagem de idade em relação ao ano escolar.
Salvaguarda das tradições
Sobre a manutenção e ações para a salvaguarda das tradições da capoeira, Mestra Francesinha nos ensina que:
“Tem que haver o registro material das memórias, para a gente não perder o que cada um fez, o que cada um deixou de legado. O que eu faço? Eu dou minha aula, tenho o meu grupo, meus alunos. Nós trabalhamos com troca de saberes, publiquei alguns trabalhos científicos falando da importância da cultura popular, da memória viva dos Mestres e Mestras de Capoeira. eu faço o registro desses Mestres e Mestras e publico no mundo acadêmico, e levo esse trabalho para o mundo popular onde eu vivo. Então, o que eu tenho feito atualmente, são estudos que falam desses Mestres e dessas Mestras, das culturas que a capoeira tem, e vou transmitindo isso de forma escrita e oral. Um dia de cada vez. Mas é importante, que o IPHAN, como órgão máximo, faça o registro de todos, todas e todes, para que o legado seja salvaguardado para as futuras gerações.
Sobre a resistência da Capoeira na sociedade, para Mestra Francesinha, os espaços da capoeira são alvos do racismo. Como mulher branca identifica que, por participar da capoeira, percebe que o racismo atua através do racismo religioso (da intolerância religiosa).
“No Brasil, a maioria da população é negra e é imprescindível haver uma educação decolonial e antirracista, para que a nossa sociedade seja formada em valores de liberdade e pelo “pretuguês” – conceito definido por Lélia Gonzalez que significa a africanização do nosso idioma.” (Mestra Francesinha)
As religiões de matriz africana são alvo do racismo no Brasil, de maneira mais direta, e seus símbolos estão atrelados à capoeira.