Mestre Fumê
Nós temos o conhecimento e precisamos passar, para que as pessoas possam repassar, sem sentimento de posse. A capoeira não é minha, é do meu povo
“Meu Deus do céu, vim aqui agradecer,
mais uma vez no pé do meu berimbau,
muito obrigado por eu ser um capoeira.
Sou cultura brasileira, tradição nacional.”
Mestre Fumê
Mestre Fumê, Denilson Carlos dos Santos Ferreira, é carioca, estabelecido no município de Niterói. Nascido em 1966, é um homem preto, formado na Capoeira e na Academia, em educação física, é professor universitário, e atualmente integra o Corpo de Bombeiro, na função de guarda-vidas. Faz parte do Grupo Muzenza de Capoeira, desde 1993.
Estudou em escola pública, durante o ensino fundamental e o ensino médio em um colégio particular, ambos em Niterói. Iniciou o curso superior de fisioterapia e posteriormente migrou para o curso de educação física, na faculdade particular Maria Thereza, também em Niterói. Fez pós-graduação lato sensu, aprimorando sua área de atuação profissional, a educação física e a capoeira. Professor universitário, campeão mundial e um profissional que conseguiu estudar e se formar por causa da capoeira.
“A capoeira me formou, inclusive me possibilitou me formar em educação física. Ao mesmo tempo, aprimorei meus conhecimentos para atuar na capoeira. Fiz amigos e conheci o mundo, fundamental na minha formação. Tudo graças a nossa capoeiragem.”
Através da capoeira
até o ensino superior
Iniciou carreira militar, foi comerciante, teve um bar, foi bancário e decidiu viver da capoeira em Niterói, para conseguir dar continuidade aos estudos. A capoeira foi sua profissão durante muitos anos. Mestre Fumê deu aula de capoeira em muitas escolas, creches e academias do município.
Em 2005 foi convidado pela Faculdade Maria Thereza para realizar o curso de pós-graduação e, assim, poder ser docente na faculdade, uma trajetória que teve início em 2006 e terminou em 2013. Teve o reconhecimento para poder dar aula em um ambiente de ensino superior, com o título de Mestre de Capoeira, que na prática, foi reconhecido pela instituição. Atuou na formação de novos professores de educação física, ministrando aulas de capoeira e cultura popular, como o samba de roda, o maculelê, a puxada de rede, o jongo e demais danças.
“A capoeira fazia parte do meu sonho de menino. Durante uma aula de jiu jitsu, um colega ouviu que o meu sonho era a capoeira, e me levou para o Mestre Verdugo, assim eu fiz a minha primeira aula de capoeira.”
Mestre Fumê
fotos: Maria Buzanovsky
Mestre Fumê
e seus Mestres
Seu primeiro mestre foi o Mestre Verdugo, do Grupo Muzenza. Depois, passou a ser aluno do Contra-Mestre Alexandre Batata, que deu a corda de Mestre para Mestre Fumê. Algum tempo depois, junto de outros Mestres, fundou o Grupo Raízes d’África. Na sequência, o grupo entrou para o grupo Muzenza, em 1993. Foi nesse ano que Mestre Fumê recebeu o título de Mestre, sua graduação. Após a saída do Mestre Batata, Mestre Fumê passou a ter como Mestre o Mestre Burguês.
Segundo Mestre Fumê, o Grupo Muzenza de Capoeira é um dos maiores grupos de capoeira, presente em mais de 50 países, tendo como presidente o Mestre Burguês.
Fumê: ganhou o apelido, seu nome de batismo, do seu Mestre na época, do Grupo Barravento, Mestre Batata. Durante uma das aulas de capoeira, Mestre Fumê, ainda menino, sem querer quebrou um vidro (fumê) que estava na sala de aula. A partir desse momento, o nome Fumê passou a identificá-lo. A identificação foi tão grande, ao ponto de ser chamado de Fumê pela sua própria mãe. Isto é, o nome Fumê passou a fazer parte da sua identidade. A identificação é tão grande que Mestre Fumê registrou seus filhos com o seu nome da capoeira: Kauan Fumê e Rudan Fumê.
Uma trajetória como esportista e capoeira
Participava de campeonatos, estaduais e nacionais, para competir. Começou na capoeira em 1983 e em 1984, quando participou do seu primeiro campeonato. Foi vice-campeão. Em 1985, disputou o campeonato e foi campeão estadual. Fez parte da equipe do Rio de Janeiro de capoeira. Foi campeão brasileiro em 1985.
Nesse momento, se aproximou de outros Mestres, em destaque, Mestre Paulão Kikongo, que também foi campeão, e por isso, eram da mesma equipe. No início dos anos de 1990, Mestre Fumê passou a fazer parte do grupo Muzenza, quando ganhou a sua graduação de Mestre.
“Bons momentos para um atleta, uma grande trajetória como esportista e capoeira.”
Dentre os destaques de sua trajetória, realça a missão de árbitro de campeonato de capoeira em Portugal. Em 2007 foi árbitro do campeonato mundial no Brasil. Durante o campeonato Master, foi campeão mundial do Grupo Muzenza, em 2007. Bi-campeão mundial em 2018, do campeonato do Grupo Muzenza.
Mestre Fumê atuou em Portugal, na Alemanha, Espanha, Colômbia e na França, quando jogou capoeira na Torre Eiffel, em 2011, no aulão do seu grupo. Participou de muitos eventos, como Mestre, convidado e formador do grupo. Nesse momento, parou e pensou:
“Olha a altura que a capoeira me trouxe”.
Educação e projetos
Atualmente, visita as rodas de capoeira de seus camaradas. É um capoeira atuante, por conta do trabalho, como guarda-vidas, prefere não conciliar com a função de dar aulas, por enquanto. Tem um aluno formado Mestre, o Mestre Salgado, do Grupo Muzenza, e participa da roda como Mestre mais antigo. É envolvido na construção do espaço de capoeira criado pelo Mestre Salgado, acompanhando as atividades e orientando o seu discípulo.
Na área da educação, atuou em escolas e creches durante toda a sua trajetória. Iniciada na década de 1980. Participou ativamente da rede privada, também lecionou em escola estadual e participou de alguns projetos no município, em destaque, os de complemento escolar, realizado no clube Abebê de Piratininga. Mestre Fumê aponta que,
“Infelizmente, os projetos do município apresentam descontinuidade, o que prejudica toda a comunidade, a escolar e a da capoeira.”
Também atuou no Instituto Padre Severino, em um projeto estadual de capoeira,
“Nesse momento, fui muito pressionado para não ensinar capoeira. Pois os agentes de segurança tinham receio do aprendizado dos jovens com a capoeira. E, com isso, trabalhava mais a musicalidade com o grupo, ensinando os instrumentos, berimbau e caxixi.”
É educador de seus alunos de capoeira. Acompanha o desenvolvimento do seu aluno Gravata, que atua com a capoeira na educação, no município de Niterói.
Racismo e proibição da capoeira
nas escolas
Sobre o racismo, Mestre Fumê compartilha que a capoeira sempre sofreu impedimentos para ser parte da escola, do cotidiano escolar,
“As ações para as aulas, com os grupos de capoeira nas escolas, eram vistas com desconfiança, éramos acusados de ser uma forma de usurpar financeiramente as famílias das crianças.”
Em outra ocasião, o racismo religioso o atacou, durante uma aula em uma escola. Mestre Fumê exibiu o filme Besouro para a sua turma. Uma de suas alunas ficou muito empolgada com o filme e com os novos conhecimentos apreendidos. Ao contar para a sua família sobre a experiência incrível que viveu, sofreu com a atitude de sua mãe (evangélica), que imediatamente se dirigiu ao colégio solicitando que Mestre Fumê fosse retaliado, alegando que o professor estava passando filme de macumba. Dessa forma, Mestre Fumê foi demitido.
“A Capoeira é uma cultura negra, e tudo que vem da raiz africana sofre preconceito no nosso país, a capoeira, o candomblé e o samba. O preconceito sofrido foi mais evidente pela religião do candomblé, presente no filme Besouro.
Em outro episódio, houve a intervenção do pastor da Igreja. Dava aula para dois irmãos, Formigão e Formiguinha, seus melhores alunos – de projeto gratuito – negros e de baixa renda, eram bolsistas e filhos da faxineira da escola, onde Mestre Fumê ministrava as aulas de capoeira,
“Os meninos foram proibidos de praticar capoeira. Sabemos que essas culturas foram proibidas, a prática da capoeira era crime. Não é mais crime, mas até hoje sofremos com isso. O racismo está presente onde quer que a gente vá, seja no exterior ou no Brasil, mas a cultura da capoeira é reprimida no Brasil. A cultura da capoeira não é reprimida no exterior. O que acontece no exterior é que somos perseguidos pela cor da nossa pele. Deixo a música do Mestre Mentirinha: ‘Você diz que preto é feio, preto é uma linda cor. Com preto você escreve a carta pro seu amor. Ser preto não é defeito, defeito é ser ladrão. Quando falar mal de preto, fale com educação, Camará!’.”
Cultura do negro para o branco, e não para o negro
Durante os últimos anos, os projetos e incentivos do poder público para a área da capoeira acabaram. Com isso, os Mestres de Capoeira conseguiam trabalho com a capoeira em escolas particulares e academias, que não tinham a preocupação de atender grupos de baixa renda. E, consequentemente, a população negra, por ter menos recursos financeiros, deixou de ter acesso mais ampliado à prática da capoeira. Se restringindo aos poucos projetos culturais gratuitos, que restaram. Mestre Fumê, ficou abalado com essa realidade,
“trabalho a cultura do negro para o branco, e não trabalho para o negro?”.
Por esta razão, Mestre Fumê sempre buscou dar aulas de graça, para crianças negras e de baixa renda.
Vivências, experiências e futuro
Mestre Fumê conquistou boas vivências e boas experiências através da capoeira, inclusive o fato de atualmente ser funcionário público, guarda-vidas do Corpo de Bombeiros, a preocupação com a saúde, os cuidados com o corpo e com a mente. Alcançou muitos lugares no esporte, incluindo a facilidade para artes marciais, como o jiu-jitsu, no qual também é Mestre.
“A manutenção da Capoeira depende de nós, capoeiras, com ética e caráter, manter a prática da capoeira, para que as tradições da capoeira permaneçam, sejam ensinadas, de geração para geração. Nós temos o conhecimento da capoeiragem e precisamos passar, para que as pessoas possam repassar, sem sentimento de posse. A capoeira não é minha, é do meu povo. É do povo brasileiro. No campo político, temos Mestres fundamentais para a nossa luta política, como Mestre Paulão, por exemplo. Minha missão é estar junto deles.
E, sonha em um futuro bem breve voltar a se dedicar às aulas de capoeira.