Mestra Cristina

Mestra Cristina

Como a prática da liberdade, a capoeira pode nos inspirar a pensar sobre caminhos mais justos e igualitários para todos e todas.

“A capoeira foi criada por africanos em diáspora; ela tem pertencimento, cor e origem.

Negar este fato é colaborar com as práticas de apagamento da nossa memória, que tiveram como objetivo exterminar todo um legado histórico e cultural, onde a capoeira se encontra inserida.

Mestra Cristina

Mestra Cristina, é carioca e atualmente, moradora de Niterói. Mulher preta, mestra de capoeira, pedagoga e educadora popular, iniciou na capoeira em 1993 e tornou-se mestra em 2018. É discípula de Mestre Emanuel, do grupo Ypiranga de Pastinha, localizado na Maré – participou do grupo por 15 anos. Fundou o Grupo de Capoeira Angola Mocambo de Aruanda, há 12 anos.

Com trajetória de ativismo político, é apoiadora do Movimento sem Teto, que luta por moradia e por melhores condições de vida para populações no município do Rio de Janeiro. O grupo de capoeira está localizado no IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras.

Participou de atividades na França, em evento do Grupo Ypiranga de Pastinha. Na Alemanha, no encontro de mulheres capoeiristas. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, em encontro da FICA – Fundação Internacional de Capoeira Angola.

Apesar de ter começado a dar aulas de capoeira a relativamente pouco tempo, como pedagoga atua na Rede Municipal de Ensino a muitos anos em uma unidade de educação infantil em Niterói, a Escola Municipal Ayrton Senna, no Morro do Estado. Também já deu aula em escolas públicas na Maré e em projetos sociais. Ao todo, a trajetória na educação é de trinta anos.

“A capoeira me ajudou muito a me conhecer melhor e a compreender o sentido da ancestralidade em mim. Eu sempre fui muito tímida e pouco falante, traços que ainda trago comigo. Estar em evidência no centro da roda, jogando, é algo que me mobiliza para fora e me ajuda a me colocar enquanto pessoa, enquanto existência. A capoeira também me formou politicamente, me ajudando a pensar sobre as questões etnicorraciais, sobre novas formas de sociabilidade, ainda que os conflitos estejam presentes. Como a prática da liberdade, a capoeira pode nos inspirar a pensar sobre caminhos mais justos e igualitários para todos e todas.”

foto: Maria Buzanovsky

A primeira Mestra de Capoeira Angola no Rio de Janeiro

Mestra Cristina sempre buscou integrar a Capoeira Angola, desde bem nova. Em 1993 no Clube dos Metroviários, iniciou com Mestre Neco. Pouco tempo depois foi aluna do Mestre Emanuel, e assim permaneceu. Na Capoeira Angola, é a primeira mulher a receber o título de Mestra no Rio de Janeiro. Trazendo ainda a responsabilidade do referencial como mulher preta na comunidade da Capoeira.

“Pessoas que fortaleceram a caminhada, para além do Mestre, Emanuel, agradecimento e gratidão à Mestra Janja, uma das fundadoras do grupo Nzinga, por acompanhar e incentivar a trajetória, grande referência”

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fotos: Maria Buzanovsky

Capoeira e as proposições para uma nova forma de sociabilidade

Esteve bastante envolvida nos projetos sociais do grupo de capoeira, orientados por Mestre Emanuel, nas periferias. Esses trabalhos foram fundamentais para a formação da pedagoga e educadora, Cristina.

“A capoeira traz uma proposta de coletividade fundamentada na vivência comunitária, na necessidade de interação e cooperação para que ela exista. Isto vai na contramão desta sociedade, cuja formatação colonialista, estimula o individualismo e a competitividade acima do bem coletivo. Assim, vejo um grande potencial da capoeira como fonte fomentadora de reflexões e proposições para uma nova forma de sociabilidade, em que pese a importância dos sujeitos na manutenção da vida coletiva. Isto se dá de diversas formas, a partir de valores africanos e afrodiaspóricos, que a fundamentam.

Por exemplo, o princípio da circularidade, é um valor que faz com que a energia circule entre os integrantes de uma roda de capoeira, alimentando a energia vital de cada um/uma dos presentes e o próprio axé da roda. Além disso, por trazer uma cosmopercepção ancorada em valores ancestrais, herança das Áfricas em nós, a capoeira é uma excelente ferramenta para uma formação antirracista, tanto como fortalecimento identitário para o povo preto, trazendo referenciais positivos sobre nosso poder de criação e transformação, como para que os demais grupos reflitam sobre os lugares postos numa sociedade onde a racialização determina, muitas vezes, quem merece ou não viver. Qual é o papel de cada pessoa na manutenção ou transformação destas injustiças?”

foto: Maria Buzanovsky

A consciência desse lugar que ocupo

Se formou como mulher preta e profissional da educação. Na comunidade da capoeira angola se formou com os títulos de Contra Mestra e Mestra, como reconhecimento pelo trabalho executado para a Capoeira. Realizando as etapas da educação e formação na Capoeira como um lugar de responsabilidade, consciente e de transformação pessoal e profissional.

“A Capoeira foi um reencontro importante na minha vida. Me abriu as portas. A Capoeira é muito importante no meu fortalecimento como mulher preta. Me ampliou a consciência desse lugar que ocupo na sociedade como mulher preta. Ampliar meu conhecimento sobre a história do meu povo. Algo transformador na minha vida. Me apaixonei pela Capoeira Angola, por poder viver uma proposta diferente de sociabilidade para a comunidade. Dediquei bastante tempo da minha vida para a Capoeira, por ser um instrumento potente para a formação das pessoas.”

Suas aulas

Suas aulas ocorrem no Instituto de Pesquisas e Culturas Negras (IPCN), no Rio de Janeiro. Em Niterói realiza trabalho voluntário na UMEI (Unidade Municipal de educação infantil) Antônio Vieira da Rocha, no Morro do Estado.

“No IPCN dou aula para adultos. As aulas acontecem às terças e quintas. Na UMEI, as aulas são para crianças entre 4 e 6 anos, às sextas. O IPCN é um espaço dedicado à pesquisa e à cultura negra. Uma instituição muito importante dentro da história do movimento negro do Rio de Janeiro. No IPCN há uma contribuição mensal, mas também com oferta de bolsas para algumas pessoas que não podem pagar. Na UMEI as aulas são gratuitas e com as crianças que são atendidas pela unidade, em sua maioria, moradoras do Morro do Estado.”

Racismo e as resistências

Sobre o racismo e as resistências da capoeira, Mestra Cristina considera que:

“É impossível ser uma pessoa preta e não ter vivido situações de racismo quase que cotidianas. É impossível enumerar e falar sobre todas. Desde a infância, passando pela escola. Incluindo as formas de isolar uma pessoa em ambientes de convivência. Sofrer perseguição por seguranças em estabelecimentos comerciais. Preconceito por ser preta. Em algumas situações no trabalho, processos seletivos, onde a condição de ser mulher preta é um peso para conquistar a vaga. Ver anúncios de emprego: precisa-se de pessoas com boa aparência, e, ser negro é ter sua aparência julgada e não enquadrada.

O racismo está presente de forma estrutural na nossa sociedade. Isto significa dizer que as instituições são contaminadas por ele. Isto faz com que, por exemplo, as escolas, em sua maioria, apesar da existência da lei n. 10.639/2003, não contam a história do povo preto, que ainda desconheça a potência e a grande contribuição das antigas civilizações africanas para a humanidade.”

Participação e formação de coletivo

Suas incríveis memórias contribuíram para a participação das mulheres pretas na capoeira, com atuação no Movimento Angoleiras do Rio, que reuniu mulheres de capoeira de diversos grupos, no final da década de 1990 e início de 2000. Com o objetivo de trazer para o debate da capoeira as questões de gênero e da participação das mulheres na capoeira, acabou trazendo desdobramentos positivos, em reuniões de homens e mulheres. E, recentemente, a formação do coletivo angoleiras pretas, tem a proposta de discutir as questões de gênero e raça na capoeira. Realizar reuniões que atravessam as mulheres pretas.

“Acredito que uma das formas de preservação da arte da capoeira, seja a observância dos seus fundamentos, dentro da percepção de um legado que nos foi deixado por nossos ancestrais africanos. Deste modo, há princípios que não podem ser relegados: a manutenção da circularidade como forma de interação e conexão, o ritual como regulador das relações interpessoais na roda, a integralidade do ser na prática da capoeira, o posicionamento político contra todas as formas de opressão. Do ponto de vista da manutenção de sua existência, é fundamental que se ofereçam possibilidades de materialidade para a capoeira e,  para isso, é necessário termos políticas públicas que garantam que o ofício dos mestres e mestras, guardiãs da cultura, possa ter continuidade e consistência. Isto se dá através de condições dignas de sobrevivência destes mestres e mestras, criando possibilidades materiais para que os mesmos exerçam seu trabalho.”

foto: Maria Buzanovsky

Fomento e editais

Sobre o fomento por editais da cultura, Mestra Cristina foi contemplada pelo Cultura Presente nas Redes (2021).

“Editais são extremamente importantes para fomentar o trabalho das Mestras e Mestres. Fortalecer a cultura da Capoeira e fortalecendo-a materialmente.”

foto: Maria Buzanovsky